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‘Confuso’, por Julio Pompeu

Julio Pompeu (*) –

O chão não é só coisa de se pisar. É também lugar de se estar no mundo. Ansselmo, escrito assim mesmo, com dois esses, perdeu seu chão. Perdeu seu lugar no mundo. Não sabe mais quem ele é. Nem de onde é. Menos ainda sabe o que quer da vida. É como se perdesse um de seus esses. Ou os dois. Poderia até ainda ser chamado de Ansselmo, mas não seria mais um Ansselmo. Não mais o Ansselmo. Ansselmo só por fora. Por dentro, só o rebuliço de ideias soltas e sentimentos fluidos.

Ele não era assim. Ao contrário, tinha convicções imperturbáveis seja por outras ideias ou pelos fatos. Tinha certezas sempre absolutas. Não que tivesse muito estudo ou cultura. Na verdade, nem era lá muito inteligente. Era só mediano. Mais ou menos inteligente, mais ou menos estudado, mais ou menos conhecedor das coisas da vida. Sua certeza não vinha de sua cabeça, mas de seus pés. Do chão firme de certezas, onde Ansselmo fincava seus pés. Perdido o chão, Ansselmo perdeu-se de vez.

Seu chão era feito de ideias sólidas como rocha. Inabaláveis. A política era uma disputa entre o bem e o mal. E Ansselmo, claro, sempre firme do lado do bem. E era bem fácil saber o lado do bem porque ele não era feito de fatos ou ideias, mas de pessoas. Os fatos e ideias feitos ou ditos por pessoas boas eram, por isso, bons. Já os fatos e ideias feitas ou ditas por pessoas más eram certamente maus.

Às vezes, mas só às vezes mesmo, Ansselmo se perguntava se o que aquela pessoa boa estava fazendo não seria uma coisa má. Era como uma escorregada no seu chão firme de convicções. Mas como em toda escorregada, um sacolejo desajeitado de braços e pernas ajeitava o prumo e, rapidamente, Ansselmo recobrava sua lucidez de jamais pensar de verdade nos fatos ou nas ideias e apenas relacionar sujeito bom com o bem, sujeito mau com o mal.

Quando aparecia um sujeito novo, julgava o caráter do mesmo jeito que julgava as ideias, por relação. Quem repetia as ideias de João, que era um sujeito bom, era bom também. Já os repetidores das ideias de Joaquim, que era mau, eram maus também. E se alguém cismasse de dialogar com ele e conseguisse fazê-lo escorregar na sua convicção sobre João, logo retomava seu equilíbrio perguntando com raiva, ironia ou os dois: “e o Joaquim?”.

E foi justamente numa dessas associações de pessoas, ideias e atitudes que o chão de Ansselmo rachou. Ronald era amigo de João e nem queria papo com Joaquim. Até que, sem mais nem menos, Ronald mudou. Abraçou Joaquim. Disse que pintou um clima. Ansselmo não entendeu. “Deve ser um blefe. Uma estratégia. É só eu esperar mais 72 horas que tudo vai mudar, tudo vai voltar a ser como era antes”. As horas e dias foram se passando e a mudança não desmudou.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Nem a segunda. Foi mais uma de muitas. Só que as outras, para Ansselmo, foram só escorregões. Dessa vez, ele caiu. Caiu no vazio de significados. No vazio moral. No vazio de chão.

Ansselmo, perdido, agora vive só e quieto. Deixou as redes sociais repletas de gente que seguia com a firmeza que Ansselmo tivera. Os parentes e amigos, uns ficaram naquelas redes abandonadas. Outros, por serem maus, Ansselmo excluiu de sua vida com ironias, pequenas agressões, xingamentos. Sobrou-se só. Sozinho de tudo. Flutuando no vazio que encontrou quando caiu em si. 

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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