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As Teias do Imaginário: Como o Bolsonarismo Constrói Realidades Paralelas

Reinaldo de Mattos Corrêa*

O fenômeno bolsonarista transcende a mera conjuntura política; ele habita um território psicológico e cultural onde mitos ancestrais e medos primários tecem uma realidade paralela. Não se trata apenas de crenças, mas de estruturas de pensamento que moldam a percepção da realidade, funcionando como escudos cognitivos contra a complexidade e a ambiguidade. Essas teias imaginárias, embora frágeis quando expostas à luz da razão, continuam a capturar milhões, pois atendem a necessidades emocionais profundas e preenchem vazios deixados pela crise de sentido contemporânea.

  1. O Mito da Pureza Original: O Paraíso Perdido e o “Povo de Bem”

A fé no “cidadão de bem” não é um conceito racional, mas um mito de pureza original. Ele evoca a imagem de um passado idílico, antes da corrupção, da diversidade e das tensões sociais, onde um “núcleo puro” resistia à contaminação externa. Esta narrativa bifurca o mundo em dois campos: os portadores da essência nacional (bons) e os agentes da contaminação (maus). O problema reside na absolutização dessa dicotomia: ela nega a complexidade humana, justifica a intolerância como defesa da identidade e cria um ambiente propício à hipocrisia, onde os “bons” sentem-se autorizados a transgredir normas em nome de uma causa suprema. É a lógica do “fim justifica os meios” alimentada por um messianismo coletivo.

  1. O Arquétipo do Herói Redentor: Do Messianismo à Infantilização Coletiva

Bolsonaro não é apenas um líder; ele encarna o arquétipo do herói redentor, figura presente nas mitologias de todos os povos. Este arquétipo desperta um desejo ancestral de proteção e salvação, especialmente em momentos de crise. Contudo, a transferência de poderes messiânicos a um indivíduo concreto é um ato de infantilização coletiva. Ela substitui a responsabilidade cívica pelo desejo de um pai protetor que resolverá todos os problemas. Quando o herói se recusa a ser questionado, transformando-se em um tirano auto-proclamado, o risco é o colapso da democracia em favor de um culto à personalidade. A pergunta crucial torna-se: até que ponto uma sociedade pode delegar seu destino a uma única figura, renunciando à sua própria agência histórica?

  1. O Anti-Institucionalismo Seletivo: A Democracia como Brincadeira de Criança

O anti-institucionalismo bolsonarista não é uma crítica sistemática às instituições, mas um jogo de poder seletivo. Instituições como o STF, o Congresso ou a imprensa são legitimadas apenas quando servem aos interesses do grupo hegemônico; quando não o fazem, são demonizadas como “inimigas da pátria”. Este comportamento revela um padrão mental infantil: a aceitação das regras apenas quando se está ganhando o jogo. A democracia, no entanto, exige maturidade: é o compromisso de respeitar o árbitro mesmo quando a decisão nos desagrada. Aceitar apenas a verdade que nos conforta é o caminho para o autoritarismo disfarçado de “liberdade”.

  1. A Nostalgia da Ordem Fantasmagórica: O Paraíso que Nunca Existe

A saudade da “ordem perdida” não é um retorno a um passado real, mas a evocação de um paraíso fantasmagórico. Esse “tempo dourado” nunca existiu; sempre foi uma construção idealizada, frequentemente associada a períodos de repressão e exclusão. O que se confunde com “ordem” muitas vezes era apenas o silenciamento das vozes dissidentes, a opressão das minorias e a manutenção de privilégios. A nostalgia serve como anestésico contra o presente incerto, mas também como justificativa para retroceder. É mais fácil sonhar com um lar perfeito que nunca existiu do que se engajar na construção de um mundo melhor, ainda que imperfeito.

  1. O Inimigo Eterno: O Comunismo como Espantalho Totalitário

O “comunismo” funciona como um espantalho totalitário, um inimigo externo necessário para unificar o grupo interno. Sua utilidade reside na sua vaguidão conceptual: pode ser adaptado para representar qualquer adversário real ou imaginário. No plano psicológico, esta crença ativa o instinto tribal, onde a identidade coletiva se define em oposições binárias (nós vs. eles). Contudo, viver permanentemente em estado de guerra contra fantasmas desvia a atenção e a energia de batalhas reais: a fome, a desigualdade, a destruição ambiental. Enquanto o país se debate com sombras projetadas na parede, os grilhões da pobreza e da exclusão permanecem intactos.

O Labirinto das Ilusões e o Caminho para Fora

Essas crenças não são isoladas; elas se entrelaçam, formando um labirinto de ilusões onde a realidade objetiva se dissolve. O “cidadão de bem” precisa do herói redentor para se sentir protegido; o herói precisa do inimigo eterno para justificar seu poder; o anti-institucionalismo seletivo precisa da nostalgia para validar seu projeto de ruptura. Juntas, estas teias imaginárias criam um universo fechado, onde a confirmação de preconceitos é prioritária sobre a busca da verdade.

A saída deste labirinto requer coragem: a coragem de reconhecer que os mitos são constructos humanos, não verdades absolutas; a coragem de encarar a complexidade sem recorrer a simplificações maniqueístas; a coragem de assumir a responsabilidade individual e coletiva, sem delegá-la a salvadores messiânicos. Só assim poderemos construir uma sociedade baseada na razão, na empatia e na justiça, onde o futuro não dependa da manutenção de mitos, mas da nossa capacidade de criar realidades mais solidárias e verdadeiras.

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

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