Erminio Guedes, Consultor –
No 20 de setembro, uma espécie de terapia cultural e cura simbólica, no pertencimento e na identidade, através do chimarrão e do churrasco, da indumentária, literatura, dança, música, poesia, trova, jogo do osso (tava), tiro de laço e das rodas de prozas.
Surge um lirismo com o “Centauro dos Pampas”, um garboso cavaleiro, pilchado a capricho desfilando com elegância, bem a cavalo e usando aperos da melhor trança, entremeada por adornos de prata. Pelegos grandes, poncho emalado, laço nos tentos e, no tilintar das chilenas, a dança do cavalo saúda a plateia.
A tradição gaúcha, na verdade, transcende em uma síntese poética da ancestralidade, gravada em significativo patrimônio cultural e histórico herdado da mescla ancestral e da sociedade colonial, e avança no imaginário do que foi e do que ainda pode ser.
A origem da tradição gaúcha tem contradições marcantes, entre os salões da casa grande e a simplicidade dos galpões, relegados à invisibilidade histórica. Entre a bonança na casa-grande e a escravidão na senzala. Entre a sesmaria latifundiária e a exclusão social escravocrata.
Da Revolução Farroupilha um legado surpreendente, longe de ser uma epopeia gloriosa, uma demanda de estancieiros manchada por traições. Entre tantas, Davi Canabarro e Caxias traíram os Lanceiros Negros, para não lhes dar a liberdade, como prometido. O massacre de Porongos, em 14 de novembro de 1844 matou escravos que foram para guerra em troca da liberdade, mas não tiveram, no pior gesto de agradecimento.
Os negros que sobreviveram foram levados ao Rio de Janeiro, onde continuaram escravos, limpando a sujeira dos quarteis. A Paz do Poncho Verde ocultou traições, inclusive ao próprio Império, quando os vencedores deram o golpe da República estado, em 1889. Portanto, as disputas políticas e o traiçoeiro golpismo vêm de longe.
Etapa feroz, na virada do Século XX, com Júlio de Castilhos e de Borges de Medeiros, aliado de Deodoro da Fonseca, o ‘golpista de 1889’. Os ‘Pica-Pau’ (ou Chimango) venceram os maragatos na Revolução Federalista de 1893 e só largaram o poder depois de quase 4 décadas, por acordo, na pós Revolução de 1923. Há uma intenção maldita em não lembrar desse passado, mas dessa passagem ecoas forte na formação da gente gaúcha.
Portanto, a tradição gaúcha não surpreende, quando tem um desvio de conduta, nos ideários conservadores. A primeira mostra, na Ditadura Militar de 1964, quando 3 dos 5 ditadores eram gaúchos, com origem nos recantos mais reacionários do estado. Recentemente, na tentativa de golpe de estado, alguns CTGs mancharam a ‘Carta de Princípios’, abrindo as portas à golpistas de plantão em frente aos quarteis.
Uma vergonha, deformar o templo da convivência plural e saudável, em recanto raivoso e antidemocrático. Esse legado autoritário não é bem-vindo entre nós. Erros a serem corrigidos para que a tradição gaúcha seja universal. Afinal, tripudiar sobre a Constituição Brasileira e trair a ‘Carta de Princípios’ é como trair a própria mãe, que lhe deu os braços para crescer. Aliás, o rio quando transborda não respeita diferenças e se acha onipotente, levando o que brilha e o que não lhe pertence, fingindo que tudo nasce em suas águas.
Evidente, a quebra de princípios, me incomoda. Esforço-me para compreender a fragilidade dos vínculos, quando a memória se esvai e a essência desaparece, ficando difícil não cobrar a normalidade institucional.
Fui dirigente no MTG por mais de 15 anos e me orgulho do fiz. Deixei a política no lado de fora e não permiti ao proselitismo contaminar relações internas. Cumpri com fidelidade ética, os pétreos princípios da tradição gaúcha: IX – Lutar pelos direitos humanos de Liberdade, Igualdade e Humanidade. XIII – Evitar toda e qualquer manifestação individual ou coletiva, movida por interesses de natureza política, religiosa ou financeira. XIV – Evitar atitudes pessoais ou coletivas que deslustrem e venham em detrimento dos princípios da formação moral do gaúcho.
Ocorre que a robotização humana distanciou o equilíbrio emocional e espiritual, e abriu esferas da irresponsabilidade social. Mas é da democracia, a tradição gaúcha representar, de um lado, o bálsamo da alma e, de outro, funcionar como trincheira do conservadorismo atrasado. No entanto, é nosso dever ético restaurar o valor da joia, para que volte a brilhar com leveza.
Neste Dia do Gaúcho, entre um mate e outro, celebrarei a tradição, no cheiro do galpão e nos acordes do vento cantador. Exaltarei histórias da peonada simples, trabalhadora e criativa, de poetas, cantadores, trovadores e declamadores, entrelaçados na memória da terra. No respeito, a teia da vida, tecida no sopro do minuano e no calor do fogo de chão.
Como o eminente Olívio Dutra, quero o nativismo autêntico, da tradição cidadã, que alegra o coração e acaricia a alma, como foi em Porto Alegre, em 1957. Estarei sempre com aqueles que não aceitam a nossa cultura em escada do autoritarismo e de golpe de estado. A deformação não pode chegar nesse ponto de ruptura.
Pensem nisso!