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Eduardo Martins: ‘Tem pão velho? Ainda não tem caro Emmanuel Marinho’

Eduardo Martins, docente associado I, UFMS/CPNA, curso de história.

Ontem aqui em Dourados-MS, encontrei um jovem casal indígena pedindo comida. Bati um rápido papo com o homem, a mulher, sempre muito tímida (medo de mim? Possivelmente).

O rapaz, a princípio, também com medo. Disse que estava com muita fome. Eu perguntei seu nome: “Jeferson”, da etnia Kaiowá, de outra cidade aqui da região da Grande Dourados, não entendi o nome. Pertinho dali tinha uma marmitaria. Fui com ele até lá e comprei a marmita para o casal.

Desde, então, ele começou a sorrir pra mim, meio sem dentes. Perguntou meu nome, ficou falante. Viu em minha camiseta pessoas indígenas e me perguntou se eu gostava de índios. Respondi eram pessoas indígenas na minha camiseta e, que sim, eu gosto das pessoas indígenas.

Ficamos à porta da marmitaria, enquanto a funcionária preparava a comida dele. O indígena Jeferson, não conseguiu entrar. Ficamos sob os olhares tensos e medrosos, de douradenses que não suportam “índios”. Olhares curiosos sobre mim, como quem dizem “como pode alguém dar atenção a “índio” “preguiçoso e bêbado”? Comendo o pão que o diabo amassou.

Alguém me perguntou se o casal indígena “trabalhava”. Não, eles não trabalham mais; não lavram suas terras, não caçam, tampouco pescam, não praticam a agricultura familiar. Esse casal, desterrado, desterritorializado e, sobretudo, desenraizado não trabalha a sua arte, não consegue praticar a sua técnica manual de artesanato como o fabrico de arcos e flechas, tampouco não pintam mais seus corpos-territórios. Eles não fazem brincos, colares, nem pingentes, ou cestos. Nada, pois, encontram-se totalmente caravelizados, submetidos ao alcoolismo como forma de manifestação caravélica da doença do branco; depressão, ou neoliberalismo. Não, não trabalham. Viraram espólios do neoliberalismo e submetidos ao seu desterramento; a cidade hostil e a droga lítica, álcool.

E suas terras? A monocultura apelidada gentilmente de “agro” tomou. Monocultura que se inter-relaciona com monogamia e monoteísmo o tripé colonialista. Note como o invasor euro-cristão possui apenas uma única cosmovisão é tudo monolítico. Assim foi a colonização escravocrata, de indígenas depois de negros, algo que é composto de uma só pedra (como um monólito), sem emendas ou juntas, rígido, inflexível, unificado e inseparável. Por outro lado despreza e grandeza do que é poli, plural. Como a poligamia, o politeísmo, e a policultura, ignorando, assim a biointeração confluente. O que importa é a senha: “você trabalha?”.

O casal se encontra aterrado, se restringindo ao nomadismo como imposição da privação de recursos, inclusive e, sobretudo, recursos psíquicos de orientação geoespacial numa cidade-prisão, de modelo euro-cristã, escravagistas dos corpos e mentes; cosmofobia, assim diz o negro filósofo e quilombola Nego Bispo. Cidade que é o contrário da mata. Cidade que reserva dez metros para os carros andarem nas ruas e nenhum espaço para nós seres moventes, andantes ou andarilhos. Foi Nego Bispo (2023, p.58), que disse:

Nós nas aldeias e vocês nos quilombos fazemos uns caminhos que às vezes não têm nem um metro de largura. E por esses caminhos passam os animais, as onças, os tatus, as pessoas. Todos os viventes do ambiente passam por esses caminhos sem conflito, sem se atacarem. Chegam os colonialistas, porém, e alargam esses caminhos, fazem eles com seis metros, e aí só passa carro. Não passa mais gente, não passa mais porco nem onça. Como é que nos nossos caminhos, que têm apenas um metro, cabe de tudo, e nos deles, que têm seis metros, só cabe um carro?”, me perguntou certa vez uma indígena.

O contrário de natureza, lugar artificializado. Lugar do povo da acumulação, do “trabalho”. Que trabalho? Cidade que tem asfalto, água encanada, supermercados, edifícios, pátria, pinga, prisões, armas e ofícios.

Não, caro poeta Emmanuel, ainda não tem pão velho e suas crianças já cresceram, casaram-se e continuaram pedindo: Tem pão velho? E a sua resposta ainda continua atual.

“Tem sua fome travestida de trapos

Nas calçadas

Que tragam seus pezinhos

De anjo faminto e frágil

Pedindo pão velho pela vida

Temos luzes em óperas avenidas

Temos índias suicidas

Mas não temos pão”.

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