Reinaldo de Mattos Corrêa*
Campo Grande não é apenas uma cidade. É um território de paradoxos: capital do bioma mais biodiverso do planeta, mas que sufoca os córregos sob asfalto; metrópole com alma de sertão, mas que se fragmenta em condomínios-fortaleza; “Cidade Morena” que apaga a memória indígena sob o concreto. Os problemas urbanísticos dessa capital são sintomas de uma doença da perda da consciência de que cidade é relação, não objeto. Eis os nós e os fios para desatá-los:
1- O Sangue Seco: Enchentes e a Morte dos Córregos
Problema:
Ano após ano, Campo Grande afoga nas próprias águas. O Anhanduí, o Prosa, o Segredo — córregos que banhavam a cidade como artérias — hoje são esgotos a céu aberto ou canais de concreto. A urbanização devorou 70% das nascentes, impermeabilizou o solo com asfalto e desrespeitou a topografia. Resultado: 70% dos bairros sofrem inundações, e a água que deveria ser vida vira tragédia.
Solução:
- Cirurgia no Asfalto: remover pavimentação em áreas críticas (avenidas Afonso Pena, Calógeras) e substituir por “solo-vivo”: pisos drenantes, jardins de chuva e valas de infiltração. Cada metro quadrado desimpermeabilizado é um pulmão para a cidade.
- Despatrimonialização das Águas: devolver os córregos à superfície. O programa “Veias Abertas” deve desenterrar trechos do Prosa e Anhanduí, transformando margens em parques lineares com vegetação de cerrado. Água não é esgoto: é patrimônio público.
- Cidadania Pluvial: criar “coletivos de chuva” em bairros periféricos. Moradores recebem incentivos para instalar cisternas e jardins pluviais, reduzindo 40% do escoamento superficial. Quem cuida da água, cuida da cidade.
2- A Arquitetura do Medo: Segregação e Condomínios-Bunker
Problema:
Campo Grande se divide em duas cidades: a “ilha de privilégios” (Jardim Leblon, Aldeia, Tijuca II), cercada por muros e câmeras, e a “periferia expulsa” (Monte Castelo, Santa Fé, Industrial), onde falta saneamento básico e transporte. Essa arquitetura do medo gera violência simbólica e real: 78% dos homicídios ocorrem em bairros com IDH abaixo de 0,7.
Solução:
- Demolição Simbólica: lei municipal que proíbe novos muros em condomínios. No lugar, “cercas-vivas” com espécies do cerrado (ipê, pequi) e portais comunitários (espaços de convivência na entrada dos bairros). Segurança não é isolamento: é vizinhança que se enxerga.
- Reforma Agrária Urbana: Implementar “Zonas de Transição Relacional” (ZTRs) entre bairros ricos e pobres. Nessas áreas, o poder público compra terrenos ociosos e cria equipamentos públicos: bibliotecas, clínicas populares, feiras de produtores locais. Onde há encontro, há paz.
- Moeda Social do Cerrado: criar o “Cerrado-Coin”, moeda digital lastreada em serviços ambientais (plantio de árvores, reciclagem). Moradores de bairros vulneráveis trocam serviços por créditos, usados em transporte e alimentação. Economia que gera pertencimento.
3- O Labirinto sem Saída: Mobilidade e a Tirania do Carro
Problema:
Campo Grande foi desenhada para rodas, não para pessoas. Com 1,3 carro por habitante, a cidade tem 3x mais viadutos que ciclovias. O resultado: trânsito caótico (perda de 96 horas/ano no trânsito), poluição do ar (30% acima do tolerável) e isolamento social. O ônibus, quando existe, é lento e inseguro.
Solução:
- Revolução dos 15 Minutos: rezonear a cidade em “bairros-completo”. Cada região deve ter: escolas, postos de saúde, comércio e lazer a 15 minutos de caminhada. O plano diretor deve priorizar uso misto do solo: lojas no térreo, moradia nos andares superiores.
- Metropolitano de Superfície: criar o “Trilho do Cerrado”: VLT alimentado por energia solar, conectando o Terminal Rodoviário à UFMS, ao Parque das Nações Indígenas e ao Anhanduí Shopping. Nas estações, “pontos de cultura” com artesanato guarani-kaiowá e gastronomia local.
- Guerra ao Estacionamento: taxar vagas no centro e usar a receita para subsídio de bicicletas elétricas. Implementar “ciclovias verdes” com árvores frutíferas (mangabeiras, cagaitas) ao longo de avenidas. Pedalar não é transporte: é liberdade.
4- O Esquecimento do Bioma: Cerrado Riscado no Mapa
Problema:
Campo Grande nasceu no cerrado, mas o nega. O bioma que abriga 5% da biodiversidade mundial é reduzido a “matinha” ou “terreno baldio”. Áreas de preservação são loteadas, e o fogo — parte natural do ciclo do cerrado — é criminalizado. A cidade perde sua identidade e resiliência climática.
Solução:
- Plano Diretor do Cerrado Urbano: mapear e proteger 100% das APPs (Áreas de Preservação Permanente) e remanescentes de cerrado. Criar o “Corredor do Tamanduá-Bandeira”, unindo fragmentos florestais da UFMS ao Parque dos Poderes. Fauna não é empecilho: é coabitante.
- Arquitetura Viva: obrigar novos edifícios a telhados verdes e fachadas com trepadeiras nativas (cipó-de-são-joão, unha-de-gato). Prédios devem “respirar” cerrado.
- Saberes Ancestrais: incorporar “guardiões do cerrado” (comunidades indígenas e quilombolas) na gestão urbana. Eles devem liderar programas de reflorestamento e educação ambiental nas escolas. Cidade que ignora as próprias raízes desaba.
Campo Grande não precisa de soluções técnicas: precisa de reencantamento. Os problemas são frutos de uma visão de cidade como máquina, não como organismo. Quando tratamos córregos como veias, bairros como células e cerrado como pele, a cidade se cura.
A mudança necessária não está em grandes obras, mas em gestos simples:
- Na criança que planta uma semente de pequi na calçada;
- No morador que troca o muro por uma cerca de jasmim;
- No político que caminha sem escolta pelas ruas.
Campo Grande será grande quando entender que cidade não é lugar: é o que acontece entre as pessoas e a terra. Enquanto houver um córrego soterrado, um muro erguido ou uma árvore cortada, a obra está incompleta. Mas quando a cidade dança com o cerrado.
Não há urbanismo sem ecologia profunda. Não há ecologia sem justiça. Não há justiça sem amor ao chão que pisamos.
*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.