Tiago Botelho (*) –
É comum que, ao mencionar a existência do território quilombola Picadinha, em Dourados (MS), eu escute com surpresa: “Dourados tem quilombo?” Sim, tem. E o desconhecimento sobre isso não é coincidência, mas consequência de um projeto histórico e racista que tenta silenciar a presença negra — sobretudo quando ela se organiza em território e luta por seus direitos.
O Quilombo Picadinha é formado por descendentes diretos de pessoas negras sequestradas e escravizadas, especialmente pela família Dezidério, que construiu essa comunidade no início do século XX. Vindas do interior de Minas Gerais e da Bahia, essas famílias se estabeleceram em parte na região de Dourados e em parte em Campo Grande. Cultivaram a terra, mantiveram suas tradições culturais e religiosas e deram origem a um território de resistência. A família Dezidério, uma das mais antigas da região, segue como guardiã dessa memória, mesmo diante da pressão de setores do agronegócio e da omissão do Estado. Picadinha resiste — e, justamente por isso, incomoda.
Recentemente, um advogado publicou artigo afirmando que a titulação da Picadinha seria um “confisco disfarçado”. Essa declaração distorce a realidade jurídica e histórica e revela profundo desconhecimento sobre o direito constitucional ao território quilombola. A regularização está prevista na Constituição Federal e regulamentada pelo Decreto nº 4.887/2003, com caráter reparatório — como já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça. Não se trata de expropriação arbitrária, mas de justiça histórica para comunidades sistematicamente marginalizadas e despojadas de seus direitos.
Do ponto de vista jurídico, o direito à titulação dos territórios quilombolas está assegurado no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988, que reconhece às comunidades remanescentes de quilombos a propriedade definitiva de suas terras. Esse direito é reforçado por tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção 169 da OIT, que garante a autodeterminação dos povos tradicionais, o direito à consulta livre, prévia e informada, e a posse coletiva da terra. A titulação quilombola, portanto, é uma obrigação jurídica nacional e internacional.
Um exemplo claro da injustiça histórica sofrida por essa comunidade está no inventário de Dezidério Felipe de Oliveira — processo judicial repleto de vícios, que resultou na exclusão de herdeiros legítimos e na transferência indevida das terras da família para terceiros. Maria Cândida de Oliveira, sua viúva, mulher indígena e analfabeta, foi enganada ao assinar uma procuração sem compreender seu alcance. Seus filhos, também em condição de vulnerabilidade, não receberam qualquer assistência jurídica. O resultado foi o esbulho de um território tradicional, em afronta direta aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da proteção aos incapazes.
Trata-se, portanto, de um inventário fraudulento, nulo de pleno direito, por vício de representação, ausência de consentimento da parte legítima e omissão de herdeiros necessários. A nulidade se agrava diante do contexto de extrema vulnerabilidade dos sujeitos envolvidos: uma mulher indígena, filhos analfabetos e uma comunidade negra marginalizada pelo Estado e pela elite fundiária local.
No inventário de Dezidério Felipe de Oliveira, foi incluída de forma fraudulenta uma suposta dívida equivalente a 3.148 hectares de terra, com menção ao cartório, livro e folhas do registro. Contudo, os próprios fraudadores ignoraram que uma pessoa falecida não assina registros. Quando solicitado, o cartório esclareceu que o registro citado — nº 110 do Livro 3B, de 27/06/1926 — “não diz respeito ao negócio jurídico em questão”. Diante disso, cabe ao Estado brasileiro reparar a injustiça histórica e reconhecer a titularidade da Comunidade Quilombola da Picadinha.
A titulação da Picadinha, em vias de ser reconhecida pelo Incra, não ameaça ninguém — ela afirma o direito constitucional à memória, à propriedade coletiva e à reparação. Quando há terceiros em áreas quilombolas, a legislação prevê compensações justas. O verdadeiro “confisco” ocorre quando se tenta manter essas famílias sem terra, sem justiça e sem voz. Defender Picadinha é defender o Brasil real: aquele que ainda resiste e exige dignidade frente à negação histórica do Estado. A titulação de seus 3.748 hectares é um imperativo jurídico, moral e civilizatório.
Dourados é território quilombola, ainda que muitos não queiram reconhecer. Em breve, Picadinha, será titulada pelo presidente Lula provando que confisco é quem tenta burlar a história, a ciência e o direito para se beneficiar da luta do povo preto. Picadinha resiste!
(*) Advogado, professor universitário e superintendente do Patrimônio da União em Mato Grosso do Sul (SPU/MS)