Reinaldo de Mattos Corrêa*
A Teologia do Domínio (Reconstrucionismo Cristão) ergue-se como um edifício teológico cujos alicerces repousam sobre uma interpretação literalista, exclusivista e coerciva das escrituras. O projeto está claro: estabelecer um “governo teocrático” na Terra, onde as leis civis sejam submetidas a uma rígida interpretação de preceitos bíblicos selecionados, visando ao “domínio” cristão sobre todas as esferas da sociedade – política, cultura, educação, leis. Na essência, um sistema de opressão disfarçado de fé, que busca impor, pela força do Estado e da lei, a visão religiosa específica a toda a nação, negando o livre-arbítrio e a diversidade inerente ao espírito humano.
O Espiritismo, codificado por Allan Kardec, surge como um antípoda radical a esta visão. A incompatibilidade dele com a Teologia do Domínio não é superficial; é estrutural, ontológica, brotando das raízes mais profundas de sua compreensão de Deus, do Homem e da Lei Divina:
- A Natureza de Deus: Amor Incondicional vs. Legislador Punitivo: o Deus espírita é, acima de tudo, Amor, Justiça e Misericórdia infinitos (Kardec, O Livro dos Espíritos – Questão 1). Ele não impõe pela força, não ameaça com castigos eternos, não favorece nações ou grupos. O governo é moral, exercido com as Leis Naturais imutáveis, que operam com justiça perfeita e oportunidade infinita (reencarnação). A Teologia do Domínio, ao buscar impor um “governo de Deus” coercitivo na Terra, reduz o Divino à imagem de um déspota humano, um legislador punitivo que precisa ser “implantado” pela força política, negando a soberania moral e amorosa. É uma idolatria do poder temporal em nome de Deus;
- Livre-Arbítrio: Pedra Angular vs. Obediência Forçada: para o Espiritismo, o livre-arbítrio é sagrado e inalienável, condição essencial para o progresso moral (Kardec, O Livro dos Espíritos – Questão 843). Cada espírito é responsável pelas escolhas que faz e constrói o próprio destino por meio delas. A ideia de impor leis religiosas pela força do Estado é uma violência abissal contra este princípio fundamental. A Teologia do Domínio substitui a conquista íntima da virtude pela obediência forçada a um código externo, anulando a liberdade de consciência e o mérito da evolução pessoal. Transforma a fé em tirania;
- Pluralismo Religioso e Progresso: Diversidade Divina vs. Exclusivismo: o Espiritismo reconhece a pluralidade das religiões como expressões diversas da busca humana pelo Divino, cada uma com sua verdade relativa e seu papel no progresso espiritual (Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo I: “Não vim destruir a lei”). Valoriza o diálogo e o aprendizado mútuo. A Teologia do Domínio, porém, é inerentemente exclusivista e intolerante. Declara-se portadora da única verdade absoluta e busca eliminar, subjugar ou silenciar todas as outras expressões religiosas e visões de mundo com o controle do Estado. É a negação da diversidade planejada por Deus para o nosso aprendizado;
- A Missão de Jesus: Exemplo Moral vs. Rei Temporal: o Cristo espírita é o Guia e Modelo supremo, cujo reino “não é deste mundo” (Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo II: “Meu reino não é deste mundo”). Essa autoridade é moral e espiritual, conquistada pelo amor, sacrifício e exemplo. Ele veio ensinar, não governar politicamente. A Teologia do Domínio distorce radicalmente esta imagem, transformando Jesus no fundamento para um projeto de poder político e dominação cultural, buscando estabelecer literalmente um “reino” terreno sob leis mosaicas reinterpretadas. É a instrumentalização política do Evangelho;
- Caridade e Transformação Social: Ação pelo Amor vs. Controle pela Lei: a transformação social no Espiritismo vem da mudança íntima do indivíduo, irradiada pela prática incondicional da caridade (amor em ação) e da educação (iluminação das consciências) (Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo XIII: “Honrai a vosso pai e a vossa mãe” e Capítulo XV: “Fora da Caridade não há Salvação”). A Teologia do Domínio propõe a transformação de cima para baixo, imposta pela legislação e pelo controle estatal, substituindo a conversão do coração pela coerção legal. Troca o poder transformador do amor pelo peso opressor da lei.
Como os Espíritas Podem Contribuir para a Dissolução da Teologia do Domínio no Brasil:
A contribuição espírita não será com o confronto político direto ou do proselitismo agressivo, mas sim pela potência silenciosa e transformadora de princípios fundamentais, vividos na prática:
- Exemplificar a Caridade sem Dogma: intensificar a ação social espírita – hospitais, asilos, distribuição de alimentos, apoio psicológico – oferecida sem qualquer contrapartida religiosa ou intenção proselitista. Demonstrar concretamente que o bem se faz por amor ao próximo, ponto final, não para conquistar adeptos ou poder político. Esta ética da gratuidade desarma a narrativa de que a fé precisa do poder do Estado para fazer o bem;
- Promover a Educação Consciencial: investir massivamente em educação moral e espiritual baseada na razão e no amor, em escolas espíritas e em programas abertos à comunidade. Ensinar valores universais de fraternidade, respeito à diversidade, responsabilidade individual e coletiva, livre-pensamento investigativo. Oferecer uma alternativa pedagógica à visão dogmática e exclusivista que fundamenta a Teologia do Domínio;
- Fortalecer o Diálogo Inter-Religioso: participar ativa e respeitosamente de espaços de diálogo inter-religioso, evidenciando a postura espírita de respeito e aprendizado mútuo. Mostrar na prática que a busca espiritual pode ser plural e harmoniosa, desconstruindo o mito do “conflito inevitável” entre religiões usado para justificar o domínio de uma sobre as outras;
- Iluminar a Doutrina com Clareza: utilizar os meios de comunicação espíritas (livros, revistas, rádios, redes sociais) para explicar com clareza e profundidade os princípios doutrinários que tornam o Espiritismo incompatível com qualquer projeto teocrático ou de imposição religiosa. Destacar as questões do livre-arbítrio, da pluralidade das existências, da justiça divina imanente e da supremacia da lei do amor sobre qualquer lei humana. Referenciar sempre as obras fundamentais como O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo;
- Viver a Política como Serviço, não como Cruzada: os espíritas envolvidos na política devem atuar como servidores públicos éticos, focados no bem comum universal, na defesa intransigente do Estado Laico, na promoção da justiça social, da educação de qualidade e dos direitos humanos fundamentais (incluindo a liberdade religiosa). Repudiar explicitamente qualquer aliança ou proposta que vise impor visões religiosas particulares por meio da legislação. Ser a voz da razão e da ética universal no parlamento;
- Ancorar-se no Cristo Libertador: reafirmar constantemente a visão espírita de Jesus como o Libertador das consciências, não como um rei temporal a ser imposto. Mostrar que seu Evangelho é de amor, perdão e transformação íntima, não um manual de controle social ou dominação política, conforme elucidado em O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Conclusão:
A Teologia do Domínio é um projeto de poder que se alimenta do medo, do exclusivismo e da vontade de controle. O Espiritismo, ao viver plenamente certos princípios – o amor incondicional, o respeito absoluto ao livre-arbítrio, a caridade desinteressada, o diálogo fraterno e a fé raciocinada, fundamentados em O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo – torna-se um antídoto poderoso. Cada centro espírita que irradia caridade sem barreiras, cada educador que forma para a liberdade responsável, cada espírita que age na sociedade com ética universalista, cada palavra doutrinária clara que ilumina as consciências, é um passo firme na dissolução natural deste projeto incompatível com a verdadeira Lei de Deus, que é Amor e Liberdade.
A contribuição espírita não é à destruição de pessoas, mas à superação da ideologia que aprisiona consciências e distorce o sagrado. Ao oferecer ao Brasil uma vivência espiritual profunda, racional, ética e verdadeiramente livre, baseada no Cristo dos Espíritos, os espíritas semeiam as sementes da sociedade onde o domínio do homem sobre o homem, travestido de fé, encontrará seu ocaso inevitável. A decadência da Teologia do Domínio virá não pelo ódio, mas pela irradiação irresistível da alternativa superior: o reino de Deus, dentro de nós, construído pelo amor e pela liberdade.
*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.