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‘Os três segundos’, por Pedro Mastrobuono

Pedro Mastrobuono (*) –

“Acordar é regressar do sonho a si mesmo, mas esse si mesmo é, às vezes, mais estranho que o sonho.” (Fernando Pessoa)

“O mundo é um constante despertar. E todo despertar é uma nova criação.” (Rabi Nachman de Breslov)

Ele despertava todos os dias segundo um mesmo rito invisível.

O som ainda tímido das aves, o lençol desalinhado no canto da cama, a luz filtrada pelas cortinas.

Mas havia algo que não mudava, algo que o perseguia como um murmúrio oriundo de um tempo anterior ao tempo: aqueles três segundos.

Três segundos. Era o tempo entre o abrir dos olhos e o reencontro com a própria tessitura existencial.

Não do nome, nem do endereço, mas do peso exato da sua própria existência. Três segundos em que o corpo ainda não reconhecia o mundo, mas a alma já pressentia tudo.

Na infância, cresceu cercado por palavras ditas em tom solene, livros antigos cheios de sinais, reuniões que se estendiam até o fim das velas.

Os mais velhos pronunciavam a fé com os olhos cerrados e a voz colhida.

Ele apenas observava. Aprendeu os gestos como quem aprende a amarrar os sapatos: por repetição.

Repetia a frase da manhã como um reflexo. Ainda deitado, sussurrava o agradecimento.

Depois, lavava as mãos com a água deixada ao lado da cama na noite anterior, como ensinavam os antigos. E assim o dia começava.

Até o dia em que um velho mestre, um daqueles que parecia ter desaprendido a idade e aprendido a eternidade, respondeu com a força de um trovão contido:

“A oração mais importante? Aquela que se diz ao acordar, antes de qualquer outra. Aquela que toda criança aprende.”

Os presentes se entreolharam, surpresos. Esperavam algo oculto, algo grande.

Ele oferecera o gesto mais simples.

Por anos, o rapaz não entendeu. Até que começou a reparar nesses três segundos.

Aquele lapso entre sonho e consciência.

Três segundos em que a alma ainda se encontrava despojada, antes de vestir os fardos e os fingimentos do mundo.

Foi nesse intervalo que ele começou a perceber: algo acontecia ali. Algo real.

Era nesses segundos que a dor da perda ressurgia como verdade, que a ausência de alguém amado voltava a doer como no primeiro dia.

Era ali que o diagnóstico retornava como se tivesse acabado de ser dado.

Era nesse instante que a realidade inteira desabava antes que ele conseguisse se proteger com as máscaras do cotidiano.

E era também nesse mesmo instante, exatamente nesse, que ele dizia as palavras que tantas vezes pronunciara sem pensar.

Palavras que, de súbito, revelaram seu paradoxo:

“…porque Tu tens uma fé enorme.”

Foi isso que estremeceu sua alma.

A divindade, segundo os textos que ele conhecia desde menino, era onisciente. Sabia tudo, via tudo.

Que fé seria essa?

Demorou um tempo para compreender.

A fé da divindade não era como a dos meros mortais, fruto da combinação de esperança com insegurança, nem poderia ser.

Deu-se conta que, ao contrário, era confiança.

Aquela fé era nele!

Uma confiança deliberada e plena, cheia de ternura, que dizia:

Eu sei do que você é feito. Eu sei que é difícil. Mas, mesmo assim, acredito que você pode.

E naquele gesto de lavar as mãos, o ritual esquecido por tantos, ele passou a sentir um toque que não vinha da água.

As mãos eram tomadas por uma presença, como se fossem envolvidas por outras mãos, silenciosas e eternas.

Como se o Espírito, Ele que pairava sobre as águas no alvorecer dos tempos, agora pairasse sobre a pequena bacia ao lado da cama.

Com o passar dos anos, o rapaz amadureceu.

E à medida que envelhecia, começou a perceber que nem tudo o que acontecia com ele dizia respeito a ele.

Os sofrimentos, por vezes, não vinham apenas para o seu crescimento pessoal, mas para servir como exemplo silencioso a outros que também buscavam sentido.

Era como se, em certas fases, sua existência se convertesse em matéria pedagógica viva.

Entendeu que há um serviço oculto em simplesmente viver com dignidade diante dos olhos alheios.

Não era apenas sobre aprender. Era também sobre ser farol, servir de catalisador para o desenvolvimento pessoal de terceiros.

Sentiu-se engajado, parte atuante, ainda que inconscientemente, em dinâmicas de grupo.

Com isso, os três segundos da manhã deixaram de ser apenas o reencontro com a dor.

Tornaram-se também o momento do chamado, do encorajamento.

Agora, ao despertar, já não receava aquele hiato inaugural.

Sabia o que viria.

Sabia do peso do mundo.

Mas também sabia da promessa.

Ele dizia a frase.

Sentia a água escorrer pelas mãos.

E era como se alguém as segurasse com delicadeza.

Sentia, às vezes, como um beijo silencioso, um sussurro sem voz:

“Tenho fé em ti. Sente minha mão. Estou contigo.”

“Os Três Segundos” – Metafísica do Amanhecer

*Por Ana Maria Bernardelli

Há homens que caminham entre nós com a leveza dos que transitam por realidades visíveis e invisíveis; dos que carregam a alma cheia de significados. Pedro Mastrobuono é desses. Sua presença não se impõe pelo rumor, mas pela escuta atenta, pela nobreza do gesto que pensa, pelo olhar que não apenas observa — contempla. Há em seus olhos uma reverência pelo mundo, como se cada criatura, cada palavra, cada arte, fosse centelha sagrada de algo muito maior.

PM carrega, com naturalidade, o dom de interpretar o invisível não à maneira dos que se atrevem a decifrar tudo, mas como os que compreendem que o Mistério é parte do que nos faz humanos.

Homem de saberes amplos e silenciosa elegância, Pedro soube, desde cedo, manejar o fino fio que separa o conhecimento da sabedoria. Não acumula informações, mas partilha ideias como quem semeia vinhedos. Suas falas, mesmo em instâncias formais, trazem o lume da escuta e o silêncio fecundo dos mestres.

Talvez por tanto tempo devotado à cultura — esse campo vasto, às vezes ingrato, outras vezes redentor —, sua escrita tenha se recolhido, tímida, como semente à espera de sol. Mas o tempo, em sua dança secreta, tocou-lhe o ombro com ternura: Pedro reencontrou-se com as palavras. Não apenas aquelas de gabinete e ofício, mas as outras — íntimas, narrativas, quase oraculares.

Foi assim que, entre os véus da timidez e o sopro de uma voz interior, nasceu o escritor de contos e artigos. Seus contos não se contentam em contar: desvelam. Seus artigos não pretendem convencer: inquietam. Como se, ao escrever, Pedro abrisse janelas em muros antigos, permitindo que a luz do presente se encontrasse com as sombras do tempo.

Segue uma leitura de “Os Três Segundos”, texto de Pedro Mastrobuono — que não apenas interpreta, mas caminha ao lado, escutando seus silêncios, respeitando suas pausas, tocando com os dedos das palavras os lugares onde mora o indizível.

Existem instantes em que o tempo se dobra sobre si e deixa entrever o que está por trás do véu da rotina. Três segundos. Apenas isso. Um lapso, um intervalo quase imperceptível — mas é nele que Pedro Mastrobuono finca a sua literatura como quem finca a alma na terra antes que ela fuja com o sonho. Três segundos entre o sono e o mundo. Três segundos antes que o nome, o ofício, as dores e os compromissos nos vistam com os tecidos de todos os dias.

“Os Três Segundos” não é, portanto, um conto. É uma espécie de oração escrita à margem da manhã. Um rito íntimo com a forma de prosa, mas com o conteúdo de quem olha o sagrado por dentro. PM não conta uma história: ele reabre um gesto, reconduz um ritual, escava o instante.

A estrutura do texto se move em círculos concêntricos: inicia no cotidiano e vai se aprofundando até o mistério. Assim como o despertar nos leva do inconsciente ao real, a narrativa mergulha do gesto ao espírito, da oração à teologia silenciosa que se revela nas entrelinhas. É a arte do texto: não grita. Sussurra. Não demonstra. Sugere. Pedro Mastrobuono é um escritor que compreende a força do indizível.

A epígrafe de Fernando Pessoa nos prepara: “Acordar é regressar do sonho a si mesmo, mas esse si mesmo é, às vezes, mais estranho que o sonho.” Eis a primeira camada filosófica: quem somos, antes de lembrar quem somos? O despertar é o ponto zero da identidade. O autor captura esse lapso, e o transforma em lente de aumento da alma.

A segunda epígrafe, de Rabi Nachman de Breslov, insinua: “O mundo é um constante despertar. E todo despertar é uma nova criação.” Essa criação é, no texto, silenciosa e infinita. A cada manhã, o protagonista ressurge — não no corpo, mas no espírito. E ali, naquele exato instante entre o sono e a vigília, ressoa a frase aparentemente simples:

“…porque Tu tens uma fé enorme.”

Acordar, no texto, não é simplesmente abrir os olhos. É regressar à consciência com as mãos ainda molhadas de outro mundo. Antes da identidade, antes da razão, há um tempo breve em que o ser humano é puro ser. E é ali que PM nos convida a olhar: não para os fatos, mas para o fiapo de eternidade que vive entre eles.

A frase que o personagem repete, sempre, ganha súbita espessura:

“…porque Tu tens uma fé enorme.”

Aqui, o mundo se desloca. O eixo se inverte. A fé — que tantas vezes suplicamos — é devolvida a nós, não como mérito, mas como confiança. Deus acredita. Em nós. E não por desconhecimento de nossa fragilidade, mas justamente por conhecê-la com ternura.

Essa inversão toca em algo que a teologia não ousa afirmar, mas a literatura pode sugerir: a fé divina não é esperança — é intimidade. É como se, no fundo de cada dor, alguém sussurrasse: “Eu sei. Mas ainda assim, estou contigo.”

PM não recorre a artifícios. Não precisa de personagens complexos, nem de tramas engenhosas. Sua grandeza está em transformar a água deixada ao lado da cama em sacramento, em dar ao silêncio da manhã o peso de uma catedral. A mão que se estende à bacia não é só a do homem: é também a mão invisível de um Espírito que nunca deixou de pairar sobre as águas.

Esse texto não é religioso — é reverente. Não catequiza — desperta. E desperta, sobretudo, para aquilo que temos deixado escapar: os pequenos rituais, os gestos herdados, os minutos que ainda não foram preenchidos de urgência. O sagrado não entra aos gritos. Chega devagar, e encontra abrigo em quem ainda escuta.

O texto, à medida que se aprofunda, abandona a centralidade no eu. O protagonista descobre que seus sofrimentos não lhe pertencem inteiramente, e que viver com dignidade é, por si só, um serviço. Um tipo de sacerdócio cotidiano. A narrativa então se expande: torna-se parábola existencial para todos nós que, ao acordar, temos medo do mundo e do peso de sermos o que somos.

À medida que amadurece, o personagem entende: suas dores não são apenas suas. Elas se tornam caminho para o outro. A vida, vivida com dignidade, pode ser ensino sem palavras. Pode ser luz acesa na varanda para quem passa na noite.

Esse é o coração do texto. E é nesse instante que mora a verdade. Não a verdade do mundo — mas aquela que nos olha antes de acordarmos. Aquela que já sabe quem somos antes que lembremos.

Pedro Mastrobuono, com esse texto, nos oferece mais que literatura. Oferece-nos um espelho que funciona ao amanhecer. E, quem sabe, ao relermos esse texto, passaremos também a esperar por esse hiato. Passaremos a reconhecê-lo. E, com sorte, sentiremos sobre nossas mãos a delicadeza de uma presença que não se anuncia, mas permanece.

Os Três Segundos é um texto que mistura filosofia, mística e poesia numa prosa suave e profundamente humana. O autor dialoga com a tradição, com a transcendência e com o cotidiano, revelando que o divino não se manifesta apenas nos grandes acontecimentos, mas no gesto mínimo, no instante breve, na primeira respiração do dia.

Um texto que ecoa a delicadeza, a mística e a intimidade. Ao fim, lemos um rito de passagem diário transformado em arte literária.

Ler “Os Três Segundos” é experimentar, no texto, o que o personagem vive no corpo: um despertar para o que nos sustenta por dentro. É um texto que não termina ao fim da leitura. Ele se instala no leitor — e reaparece no instante seguinte em que despertamos. Cada leitor, ao abrir os olhos pela manhã, passará a escutar o eco desse hiato: o momento em que o mundo ainda não chegou, mas Deus já está.

Porque, como nos ensina PM, alguém — alguém que crê em nós — já nos espera nos três segundos da alvorada.

Campo Grande/MS, 29/06/2025.

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