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Julio Pompeu: ‘Nobre deputado’

Julio Pompeu (*) –

Márcio adora dinheiro. Criança, gostava das cores, do cheiro, da textura. Pulava de alegria quando enchia a sacola de balas em troca de algumas moedas. Dinheiro era doce. Era beleza. Era felicidade.

Não tinha outras alegrias além das que o dinheiro podia comprar. Mal via seus pais, cada um preocupado demais com suas vaidades, responsabilidades e desejos para lhe dar atenção. Foi criado por babás e empregadas, regularmente contratadas e demitidas para não folgarem demais com o tempo. Aprendeu a não se apegar a ninguém enquanto se apegava aos presentes que ganhava como “prova” do amor incondicional dos pais. Dinheiro também era amor.

Na juventude, comprou amigos dando festas e comprou amores dando presentes. Bancava extravagâncias e exibicionismos. Seu orgulho era regado a dinheiro. Seu caráter, forjado na grana. A seus olhos, tudo e todos estavam à venda. Especialmente as mulheres. Havia as baratas, que entregavam seus prazeres por umas poucas bebidas, voltas em carrões esportivos ou jantar em restaurante besta. Havia as caras, que custavam joias, viagens e outros mimos de luxo. Mas não havia, a seus olhos, quem não estivesse à venda.

Homens também. Mas estes, os comprava com outros propósitos. Ao assumir os negócios do pai, descobriu o preço de servidores públicos, policiais, juízes, deputados e ministros. Incomodava-se com o fato de, diante deles, ter dinheiro mas não ter poder. Resolveu eleger-se.

Começou com calma. Comprou a amizade de um dono de partido financiando sua campanha. Dois anos depois, comprou sua vaga a candidato. Sua estratégia eleitoral foi a compra de votos. Sacos de cimento, cestas de comida e remédios nas periferias. Vale para abastecer o carro nos bairros de classe média. Jantares e promessas de favorecimentos nos jardins mais endinheirados. Foi bem votado.

Gostou muito da Câmara dos Deputados. Vaidoso, egoísta, ambicioso e completamente sem escrúpulos, sentia-se entre os seus. Lá, todos eram comerciantes. Compravam e vendiam favores. Sempre pessoais. Interesse público era apenas uma balela retórica dita a um ou outro jornalista conivente com o jogo de aparências. Comprou aliados como comprava amigos. Popular entre os seus, tornou-se presidente da Câmara.

Agradou aos de direita e aos de esquerda justamente por não ser nem de direita nem de esquerda. Era de dinheiro, como a maioria. Também como a maioria, não titubeava em aliar-se ao mais forte. Assim como não hesitava em trair quando uma nova força ameaçava surgir no horizonte. Seu partido era o dinheiro e sua causa, a dele mesmo. Um exemplo para seus pares.

Ao chantagear ministros, trair e derrotar o presidente em votações, sentiu-se no auge de seu poder. Imbatível. Tudo e todos estavam a seus pés. Tudo e todos coisas suas. Foi bem no meio deste devaneio de poder que viu Carla, uma mulher bem mais jovem que ele. Bem mais bonita que as demais. Podendo tudo e tendo a todos, queria Carla.

Ela não topou. Tentou comprá-la. Não quis saber. Ofereceu mais do que jamais pensou em oferecer a outra. A moça indignou-se. Investigou e descobriu seu ponto fraco. Fez seu pai perder o emprego, com a promessa de que seria recontratado se ela cedesse. Ela não cedeu.

Estava desesperado de desejo e louco de impotência. Quem sempre pôde ter tudo e todos, por que não poderia tê-la? Logo ela, que não era mais bonita que outras que teve. Que não era mais rica que outras que comprou. Era moça sozinha, simplória. Por que não o queria? Não entendia. Por que não se vendia?

Apelou a policiais comprados para capturá-la. No cativeiro, resolveu tomá-la à força. Entrou no quarto à meia-luz e a encontrou amarrada e encapuçada. Retirou-lhe o capuz esperando seu olhar de medo. Ela o olhava firme, com raiva, com nojo, sem medo. Acariciou-lhe. Bateu-lhe. Um, dois, três tapas. Um soco. Ela não deu um suspiro sequer. Apenas o encarava, séria, enfurecida, enojada, corajosa, altiva.

Sentiu uma agonia que nunca experimentara até então. Perdeu o fôlego como se o esmurrado fosse ele. Amedrontou-se como se o cativo fosse ele. Saiu sem dizer uma palavra.

Nunca mais foi o mesmo. Tornou-se calado, quase recluso. Terminou o mandato num isolamento quase melancólico. Deixou a vida pública para entrar no esquecimento digno de sua irrelevância.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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