fbpx

Desde 1968 - Ano 56

10.9 C
Dourados

Desde 1968 - Ano 57

InícioColunistaJulio Pompeu: 'O idiota'

Julio Pompeu: ‘O idiota’

Julio Pompeu (*) –

Romeu é um idiota. Completamente idiota. Sempre foi. Ainda criança, emprestava seus brinquedos para outras e não pegava o brinquedo das outras. Só brincava com eles se alguém lhe desse. E devolvia quando alguém pedia de volta! Não ligava se outra criança quebrasse seu brinquedo, nem reagia quando alguém lhe batia ou tomava uma mordida.

Sua mãe percebeu desde cedo, aflita, o comportamento do filho. O pai negou por um tempo. “É fase, vai passar”. Mas a fase nunca passou. Tentaram de tudo. Psicólogos, psiquiatras, até um guru que prometia curar o caráter dócil do garoto com chás e mantras. Nada. Na adolescência, colocaram Romeu numa oficina chefiada por um coach. Romeu apanhou, passou frio, fome, subiu morro à noite e quase morreu lá em cima. Era para ele gritar, reclamar, brigar, bater. Mas Romeu não gritava, não reclamava, não batia. Só agradecia e sorria. Foi quando o pai, seguidor do coach, desistiu de Romeu.

“Que será de meu filho? Nunca será deputado, empresário, policial… Não bobo desse jeito”. Era estudioso, não se negava. Ia além do que professores pediam. Também era inteligente e aprendia rápido. Mas de que adianta saber alguma coisa hoje em dia? O mundo é dos coachs, dos traficantes, dos caveiras que matam e ganham medalhas, dos grosseiros e egocêntricos que falam mal de tudo sem saber de nada e acabam eleitos ou famosos por isso. “Mas idiota como Romeu, coitado, que fim terá?”. Preocupava-se a mãe.

Com as mulheres também não se dava bem. Até se encantavam por ele num primeiro momento. Não era feio. Mas bastava alguns minutos de conversa para se desencantarem. Ele não falava de esportes, nem de programas e séries de tv, não conhecia nada disso. Nem mesmo falava mal de políticos ou discursava como o mundo seria melhor se matassem bandidos, corruptos, ou gente de uma ou outra religião. Também não falava de academia e exercícios, nem de dietas. Preferia falar da beleza do pôr do sol, do cheiro da chuva, de encantos simples da vida. Ninguém suportava esse papo por mais do que 10 minutos.

Mas, de todas as suas idiotices, a mais idiota era que não ligava para dinheiro. Não se gabava do que tinha e, estranhamente, não mentia para parecer que tinha mais dinheiro. Não escondia dos outros que andava de ônibus porque não tinha carro – sequer aprendeu a dirigir porque prefere andar em transporte coletivo. Falha suprema de caráter, não ligava para os soberbos, não puxava saco de gente poderosa e rica e os tratava do mesmo jeito que tratava um pedinte. Do mesmo jeito que tratava um miserável de quaisquer das misérias humanas. Respeitava, sorria, cumprimentava, procurava dizer algo de bom. E esses tipos de indiferença e gentileza que ninguém perdoa.

Conseguiu trabalho em uma empresa. Percebendo seu caráter, colegas lhe empurravam as piores tarefas, que Romeu aceitava e as fazia sem reclamar. Viram nele o pato perfeito para levar pequenas culpas por erros dos outros. Das pequenas, passaram a lhe atribuir grandes culpas. Era demitido. Em novo trabalho, a mesma história. Até que acabou preso, acusado de crimes que os outros cometeram.

Morreu na prisão, esquecido por lá. Não se sabe nem mesmo o motivo de sua morte, se por doença ou crime. Ninguém ligou, ninguém investigou, porque Romeu era um idiota, um dócil, um nada.

No necrotério, o legista achou curioso aquele cadáver que sorria.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

Clique aqui para ler artigos do autor. 

- Publicidade -

ENQUETE

MAIS LIDAS