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‘Na Feira encontrei Gerolina’, por Jones Dari Goettert

Jones Dari Goettert (*) –

Visitando a Felit-MS (Feira da Literatura de Mato Grosso do Sul), na Câmara Municipal de Dourados, na noite deste 4 de junho, entre encontros e conversas, encontrei Gerolina – em livro, narra a vida com muitas outras gentes, em seus vários lugares.

“Memórias de Gerolina”, da autora Gerolina Carvalho Santos (Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2008), é um livro, digamos, “simples”. Escrito em primeira pessoa, o texto escrito é permeado por imagens (fotografias com Gerolina, seus lugares, outras gentes). “Simples”, tudo nele é revelador de um mundo vivido entre 1944 e 2008 (ano de nascimento de Gerolina e ano de publicação do livro, respectivamente).

Aqui, em um texto simples e breve é difícil expressar tudo o que o livro traz à tona, experiências de vida compartilhadas pela autora. Por isso, destacarei passagens que me atravessaram profundamente, que acredito devam tocar todas e todos que lerem o livro.

Filha de família garimpeira da Bahia, logo que nasceu um “velho garimpeiro” teria sugerido para seu pai: “[…] pegue uma gamela com água do garimpo e ponha uma pepita de ouro e lave a criança, que é para ela ter muita sorte e o dom de saber as coisas boas”. Não se sabe se o pai seguiu o conselho, mas as passagens futuras do livro são um misto de muitas dificuldades (ou pouca sorte) e muita superação – a sabedoria das “coisas boas”, talvez.

“[…] meus pais separaram-se quando eu tinha 7 anos. […] Passamos por muitas dificuldades financeiras […]. A casa em que fomos morar era de pau-a-pique […]. Na escola não tinha carteiras, cada aluna trazia de casa um banquinho. […] meu marido desempregado […]. [Eu tinha] fraqueza por falta de alimentação. […] Com meus filhos todos pequenos, houve o tempo de muita seca e eu tinha de buscar água com um balde na cabeça no meio da terra tombada. […] zeladora, lavadeira e coveira”… Essas são algumas das passagens de uma vida entre a Bahia e o Mato Grosso (do Sul), Dourados, suas linhas colonas e seus distritos.

Os momentos de alegria e solidariedade, contudo, parecem superar todas as dificuldades. “[…] pessoas simples e muito hospitaleiras. […] o importante era aprender a ler e a escrever. […] minha primeira comunhão. […] meu primeiro título de eleitor […]. Filhas de Maria. […] me casei […] Desta união nasceram seis filhos […]. quando vemos os filhos felizes sentimos felicidade em dobro. […] Criei poesias para homenagear os professores em datas especiais”… Momentos assim são marcantes nas “Memórias de Gerolina”, ajudando-nos a imaginar – e a reviver com as memórias – partes de uma vida que se misturam a outras tantas, a muitas outras.

Vidas como à da mãe Honorina, do pai Mateus, das irmãs Genelice e Gilza e do irmão Alicério, da avó Maria José e do avô Justimiano, da bisavó Maria e do bisavô Henrique, e da tataravó Medratada… De imigrantes japoneses, de dono de terra, de prefeito e de vereador, de padres, freiras, frei e bispo… Do marido Manuel, das filhas Eva Maria, Evanilde e Cleuza, e dos filhos Francisco e Carlos (gêmeos) e Natalício, e mais Jefferson… São gentes que partilharam lugares em condições às vezes semelhantes, outras nem tanto. Gentes que certamente, em suas vidas e memórias de agora, imaginamos, devem ter e sentir a Gerolina de suas próprias vidas.

Gostaria de ressaltar, ainda, duas passagens bastante densas que refletem relações de um “Brasil simples” (o termo é meu) que se encontra e se junta em sua diversidade. Ao se referir à tataravó Medratada, as memórias de Gerolina parecem chorar: “minha tataravó Medratada, uma índia que foi capturada na mata quando criança”… Gerolina, suas ascendências e descendências têm cor e sangue indígena misturados à cor e sangue também sertanejo, mestiço, migrante… De encontros de uma brasilidade igualmente “braçalidade”, isto é, feito de culturas e trabalhos braçais, ou de um Brasil rural já se imiscuindo a uma “urbanidade colona” em vilas e distritos.

E “encontros” como este: (chegando em Mato Grosso em 1956, indo para casa de tio em linha de Fátima do Sul) “Até chegar na sua casa, passamos por dentro de uma mata onde tivemos contato pela primeira vez com povos indígenas. Sentimos muito medo, porque víamos eles como selvagens e perigosos. […] Afastaram-se de nós e começaram a pronunciar alguma[s] palavras em guarani, que não conseguimos entender nada. As índias carregavam os filhos amarrados na cintura e um saco de alimentos na cabeça; os homens não levavam nada, tinham só uma tanga no corpo”.

Capturas, garimpo, trabalho doméstico e trabalho na roça, migrações de lá para cá e ainda mais longe, gentes diversas, algumas “selvagens e perigosas”, outras solidárias e companheiras, gentes de família e gentes da vida, juntas e juntos. “Memórias de Gerolina” é, em sua “simplicidade”, a exposição de experiências de vida na mistura de dores e de amores, e de uma Gerolina que “apenas” queria, em qualquer lugar, com qualquer pessoa, fazer poesia: “O que queremos é chuva. / É dias que sejam bons”. Um dia bom, sim, ao ler/conhecer suas memórias.

Obrigado, Gerolina!

(*) Reitor UFGD

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