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Relatório Figueiredo prova material contra o marco temporal: Renitente esbulho e a torpeza do Estado

Wilson Matos da silva (*) –

A discussão sobre o Marco Temporal tem gerado intensos debates jurídicos e políticos no Brasil. Seus defensores alegam que somente terras ocupadas por povos indígenas até 5 de outubro de 1988 poderiam ser objeto de demarcação. Condicionar as demarcações à presença dos índios nas terras nessa data, é negar a histórica vulnerabilidade dos nossos Povos, ante as violências do processo pós-colonial, a abertura das frentes de expansão e as violações de direitos, especialmente durante o período da ditadura militar, conforme denunciou, recentemente, o relatório da Comissão Nacional da Verdade

Esse critério ignora um fator histórico incontestável: O RENITENTE ESBULHO POSSESSÓRIO PROMOVIDO PELO PRÓPRIO ESTADO, especialmente durante a ditadura militar (1964-1985). O Relatório Figueiredo, documento oficial produzido pelo governo brasileiro em 1967, evidencia de forma inquestionável que inúmeras comunidades indígenas foram brutalmente removidas de seus territórios tradicionais, impedindo-as de cumprir a exigência do Marco Temporal.

O Relatório Figueiredo constitui um Documento de Acusação Contra o Estado, encomendado pelo então ministro do Interior, Albuquerque Lima, e coordenado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, o Relatório Figueiredo investigou crimes cometidos pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), prédio da atual Funai. O documento revelou assassinatos, torturas, escravização, desaparecimentos forçados e EXPULSÕES MASSIVAS DE COMUNIDADES INDÍGENAS DE SUAS TERRAS. Segundo o relatório, políticas deliberadas foram postas em prática para permitir a grilagem e a ocupação de territórios indígenas por latifundiários e empresas agropecuárias.

Entre os casos documentados, há relatos de aldeias inteiras dizimadas, como os Parakanã e os Cinta-Larga, que sofreram massacres para que suas terras fossem apropriadas por não indígenas. O documento também evidencia a conivência do Estado na implantação de um regime de violência sistemática contra as populações indígenas.

Se o próprio Estado reconhece que promoveu um esbulho violento e deliberado contra os povos indígenas, como poderia, agora, utilizar essa situação para lhes negar direitos territoriais? Essa contradição é inaceitável do ponto de vista jurídico e moral.

O Estado não pode agora, quer seja por leis, emenda a constitucional ou “mesa de negociação”, alegar Sua Própria Torpeza. No Direito, é consagrado o princípio nemo auditur propriam turpitudinem allegans, segundo o qual nenhuma parte pode se beneficiar da própria torpeza. Esse princípio impede que o Estado utilize um esbulho por ele mesmo praticado como justificativa para negar direitos aos povos originários. Ao determinar um marco temporal arbitrário, o Estado desconsidera que sua própria violência institucional impediu a permanência dos indígenas em seus territórios até 1988.

Portanto, não se pode aplicar o Marco Temporal sem antes considerar e corrigir o impacto das remoções forçadas. A exigência de comprovação de posse indígena na data da promulgação da Constituição é um critério que, além de inconstitucional, é flagrantemente injusto diante dos fatos históricos comprovados pelo próprio Estado brasileiro.

No imperativo constitucional inserto no Art. 67 do ADCT, pela suprema vontade do constituinte Originário, o que se visava na verdade era a mínima Reparação Necessária O Artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) impõe ao Estado o dever de demarcar as terras indígenas no prazo de cinco anos após a promulgação da Constituição. Esse dispositivo não apenas reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras, mas também representa uma obrigação de reparação histórica pelos crimes cometidos no passado.

A tentativa de reinterpretar esse artigo sob a ótica do Marco Temporal subverte seu sentido original. Ao negar a obrigatoriedade da demarcação para comunidades que foram removidas antes de 1988, o Estado está, na prática, perpetuando os efeitos do renitente esbulho praticado durante a ditadura militar.

A interpretação correta do Artigo 67 do ADCT exige que o Estado leve em conta os esbulhos cometidos em períodos anteriores e assegure o retorno das comunidades despossuídas ou, no mínimo, medidas compensatórias justas.

A “Mesa de Negociação” é uma farsa, um retrocesso disfarçado, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a inconstitucionalidade do Marco Temporal, setores políticos tentam agora impor uma “mesa de negociação” para resolver questões territoriais. No entanto, essa proposta é uma manobra para esvaziar o dever constitucional do Estado de demarcar terras indígenas.

Negociar direitos já garantidos é um contrassenso jurídico. O Estado não pode transformar um direito constitucionalmente reconhecido em objeto de barganha política. Qualquer solução que ignore os efeitos do renitente esbulho ou que condicione a demarcação a interesses econômicos viola o princípio da continuidade do dever constitucional.

Portanto, o Relatório Figueiredo é uma prova documental que desmonta o argumento do Marco Temporal. Ao revelar os crimes cometidos contra os povos indígenas e as remoções forçadas promovidas pelo Estado, esse documento demonstra que não é possível fixar um marco temporal sem considerar os efeitos do renitente esbulho.

O Estado brasileiro tem uma dívida histórica inegável com os povos indígenas. A aplicação do Artigo 67 do ADCT deve ser levada a sério, e não deturpada por interesses políticos. O Marco Temporal é uma tentativa de consolidar uma injustiça histórica, e não pode prevalecer diante das evidências apresentadas pelo próprio Estado brasileiro.

(*) Indígena, Advogado OABMS 10.689 Criminalista, especialista em Direito Constitucional, e Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS.

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