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Para não esquecer o passado: a presença de 1964

Eudes Leite – Historiador. Professor-titular no Curso de História da UFGD.

(Autor de “Aquidauana: a utopia, a baioneta e a toga nos entremeios de uma pretensa revolução”. Ed. UFGD)

Passados 60 anos dos acontecimentos que produziram o evento de 31 de março de 1964, sobrevivem tentativas de nominar a ocorrência pelo que ela não foi.  É indispensável afirmar, a partir da História que em 31 de março de 1964 nunca aconteceu uma “Revolução”; naquele dia, que não pode ser esquecido, ocorreu um golpe de Estado no Brasil, liderado por civis e militares, seguido por uma Ditadura Militar, apoiada por grande parte da elite econômica do país. João Goulart, o Jango foi destituído do poder, inclusive sob o falso argumento de que havia saído do Brasil. As pesquisas históricas e outras realizadas em campos de saber vizinhos demonstraram ser incorreto afirmar que aquele acontecimento foi uma “Revolução”.

É importante considerar que o golpe de Estado de 1964 não foi um ato isolado e inédito na história brasileira. A fundação da República em 1889 decorreu de um golpe que, entre outras providências, depôs o Imperador Pedro II substituído por um militar. E ao longo da história republicana, o país viveu outros golpes ou tentativas frustradas de deposição do governante no poder. Essas circunstâncias produziram ao longo do tempo um modus operandi no campo político conservador de que as Forças Armadas, em geral, e o Exército, em especial, são instituições disponíveis para serem acionadas em situações quando interesses dos setores políticos estão ameaçados. Recentemente e pautados por um malabarismo interpretativo, grupos interessados na quebra dos ritos constitucionais defenderam a ideia de que o Artigo Constitucional número 142 tornava as FAs uma espécie de quarto poder; um fictício poder moderador, superior aos outros três e com capacidade de tutelar o Estado e a Nação. Entendimento estrambótico desde a sua formulação, passando por sua funcionalidade e alcançando a condição de aporia em uma filosofia que embasa um Estado Democrático.

A história da conquista e da colonização brasileira, em especial, e a Latino-americana em geral, se constituiu por um processo de imposição de valores culturais e de exercício da política pautada pela violência e consequentemente fundadora de práticas autoritárias no exercício do poder por parte da elite colonizadora. Em uma perspectiva de longa duração, é possível perceber as raízes das dificuldades em consolidar um regime Democrático no Brasil, país que desse o início da República viveu sobressaltos políticos e que a partir da década de 1920 viu um novo e poderoso ingrediente ser inserido nas práticas discursivas do conservadorismo nacional: o anticomunismo. A série de tentativas de golpes, fracassadas e bem sucedidas, nas quais os militares se comportaram como se fossem tutores da nação consolidou um tipo de fazer política no qual as Forças Armadas passaram a ser consideradas, e muitos de seus integrantes concordaram com essa má interpretação, um partido político supraestatal, armado e disponível para focar seus armamentos na direção daqueles que sustentam inclusive financeiramente a sua existência. Esse processo não nasce e medra exclusivamente no interior das unidades militares, mas é parte de uma articulação em que parte importante da sociedade civil, com acesso aos andares mais altos ocupados por comandantes, proseiam na defesa de um ideário autoritário e excludente. A cultura política brasileira, especialmente aquela construída e exercida ao longo da República não foi generosa para com o ideário de uma sociedade democrática, nem mesmo naquilo que caracteriza a democracia enquanto um modelo de existência da participação política gestada em uma sociedade burguesa, no sentido de que “burgo” é um aglomerado urbano, e burguês é aquele que habita esse lugar.

O último golpe de Estado, civil e militar, bem sucedido, ocorreu em 1964 e durou mais de 20 anos. O modelo ou seu projeto político fracassou e o período seguinte à Ditadura denominado de Nova República parece ter se encerrado em 2016, com o impedimento da então Presidenta Dilma Roussef. Desde então o Brasil vive sobressaltos e a eleição de 2018 levou à presidência da República um político de pouca estatura em seu campo e detentor de uma história controversa e marcada por fracassos profissionais e pessoais. A identidade desse ex-presidente é a expressão dos valores de uma parte significativa da população brasileira: autoritário, misógino, racista e homofóbico.

O que tento frisar nesse breve texto é que o espirito que motivou o golpe de Estado de 1964 se manifestou em muitos grupos da sociedade Brasileira a partir de 2013, ano das manifestações que precederam e iniciaram momentos em que as formas de expressão da vontade popular passaram a ser objeto de questionamentos. Mais tarde, no pleito eleitoral de 2014 o ex-senador Aécio Neves discordou dos resultados da eleição e solicitou uma recontagem dos votos. Relembre-se que Neves é neto de Tancredo Neves, um dos políticos responsáveis pela transição que colocou fim à Ditadura inaugurada em 1964, escolhido Presidente da República por um Colégio Eleitoral e falecido antes de sua posse.

Retomando, durante os quatro anos do ex-presidente Bolsonaro, entre outros acontecimentos impactantes, o país viveu os sobressaltos de uma Pandemia, o COVID 19, e a militância do governante no tensionamento das instituições do Estado, especialmente o Poder Judiciário, explicitando a cada momento e a cada ato sua identidade autoritária, materializada em uma discursividade golpista, sustentada por informações distorcidas ou falsificadas. Na mesma proporção, o negacionismo enquanto valor ganhou relevância no debate político. Em pouco tempo ficou claro que não se tratava de um governo Conservador, mas de Extrema Direita, com vínculos externos que articulavam as ações e a performance midiática do governante (grosseiro, mal-humorado, evasivo, entre outros aspectos) à um modelo de populismo de extrema-direita, cujo escopo ideológico tem sido denominado por alguns estudiosos de “Tradicionalismo”.

As eleições de 2022 intensificaram as ações do governante e de parte de seu governo, instrumentalizando agências do estado na direção de impedir, primeiro a eleição de seu opositor, o agora Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e depois de interditar a posse por meio de um golpe de Estado. Cabe assegurar que não existem declarações de alguém que golpeia instituições de Estado e da Nação conceituando suas ações como golpe de Estado. Aliás, os golpistas de 1964 sempre reivindicaram uma (inexistente) legalidade constitucional para amparar suas ações, produzindo inclusive um aparato de normas para justificar a ilegalidade cometida.

Por fim, cabe lembrar os eventos de 2022 que materializaram a identidade autoritária presente no Brasil e compartilhada pelo governante que se homiziaria nos EUA: 30 de novembro, quando a PF tentava impedir, no Nordeste, eleitores de chegarem às urnas; 31 de outubro, foram instalados bloqueios com o uso da violência em rodovias do país; 4 de novembro deflagaram-se manifestações de teor explicitamente golpistas, com acampamentos em frente à unidades militares, 12 de dezembro, com a diplomação do vencedor da eleição militantes tentaram invadir a sede da Polícia Federal na capital federal; 24 de dezembro foi interrompida uma tentativa de explosão de um caminhão de combustível em frente ao aeroporto de Brasília e, em 8 de janeiro de 2023, o bote final: a invasão e depredação de prédios públicos (Congresso, Executivo e Judiciário) por manifestantes inconformados com a derrota de Bolsonaro e posse recém ocorrida de Lula.

O que se percebe é a dissonância cognitiva no interior da sociedade, possibilitando que os pendores golpistas e os valores autoritários venham à luz do sol, respondendo à performance do ex-presidente. Contudo, a emergência pública do golpismo e do autoritarismo, em grupos da sociedade brasileira, pode ser importante na trajetória da República e amadurecimento da democracia porque traz à lume quem somos os brasileiros, em sua diversidade de valores e concepções políticas. O reconhecimento das identidades é importante para encerrar mitos e mitologias políticas presentes em textualidades românticas que representam o Brasil e seu povo como entes lineares e desprovidos de práticas e valores éticos essenciais, impolutos. Em síntese, se tivemos um golpe civil-militar em 1964, se tivemos um ex-presidente autoritário e golpista é porque temos uma parte da sociedade civil, incluindo setores da grande imprensa, do judiciário, dos partidos políticos, das casas religiosas, entre outros ambientes, aderente ao conjunto de ideias que esse perfil de governo e governante vocalizaram. Cabe ponderar se os acontecimentos verificados desde 2016, com destaque para os quatro anos do governo do ex-presidente Bolsonaro podem ser interpretados como uma resposta a indagação do poeta, nos anos 1980, ao bradar: “Brasil, mostra a tua cara…”

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