Julio Pompeu (*) –
Após uma vida de sonhos intranquilos, Gregório acordou metamorfoseado em uma criatura que lhe era estranha. De início, não percebeu completamente a mudança. Sentia-se diferente. Havia estranhamento de si mesmo. Como se seu corpo não fosse mais o mesmo. O espelho lhe mostrava o corpo de sempre, com a barriga adquirida na última década na medida em que os cabelos lhe abandonavam. “À vista, nada mudou. Mas algo mudou. O que está diferente?”.
Talvez, pela exagerada atenção ao espelho, demorou-se a perceber que seu comportamento estava diferente. Não estranhava mais coisas que lhe eram normalmente estranháveis. Nem reagia do mesmo jeito aos acontecimentos à sua volta. Atentou-se para seu comportamento apenas quando assustou-se cumprimentando um gay. Dirigiu-lhe um sorriso amistoso e deu “bom dia!” como até então fazia normalmente com qualquer pessoa, exceto gays, lésbicas, trans e outras tantas que, para ele, não eram bem pessoas. Eram só “aquela gente”. Agora, não. Olhou novamente para o moço, provavelmente com uma cara esquisita ainda afetada do susto. E viu apenas uma pessoa. Uma pessoa normal. Alguém como ele, que pensa e sente. E pensou que deveria respeitá-lo para que não sentisse tristeza. Não demorou muito para Gregório concluir que mudara por dentro.
Vasculhou com cuidado seu espírito e não encontrou mais o ódio que tanto lhe animou até aquele dia. Até tentou, mas não conseguia mais odiar. Aproximou-se de uma trans só para se testar. Ao vê-la triste sabe-se lá porquê, não resistiu e a abraçou com um afeto que sequer imaginava ser possível. E não foi só para com “aquela gente” que seu espírito se transformara. Também não tinha mais nojo de gente preta, nem de pobre, nem mesmo dos mais pustulentos e mal cuidados. Ao contrário, apenas se compadecia de seus sofrimentos e se alegrava com suas alegrias. “Devo estar doente”.
No hospital, foi atendido por uma médica que tinha idade para ser sua filha. Não olhou para ela como um bibelô sexual. Nem pensou nela como incapaz de cuidar dele apenas por ser mulher e jovem. Respeitou-a como profissional. Colheram-lhe fluídos e usaram umas engenhocas para examinar-lhe da cabeça aos pés. Submeteu-se com paciência e fé na ciência. O que, por si só, já era outro sintoma. Passou a vida a desqualificar a ciência e a cultura. Acreditava só no que queria acreditar. E queria acreditar somente no que lhe trazia vantagem e conforto. A jovem doutora foi categórica: “o senhor tornou-se uma pessoa decente.”. Estava atônito! “Como assim?”. “É raro, mas acontece”. “Tem cura?”. “É ainda mais raro acontecer, mas não é de todo um mal”.
Isolou-se em casa, abatido. Não fazia mais ideia do que é ser uma pessoa decente. Também não tinha mais disposição para suas indecências. Pensou em dar uma volta de moto sem capacete para espairecer. Somente a ideia de transgredir uma norma de trânsito já lhe atormentava. Desistiu da moto por falta do acessório. “Agora será assim. Uma limitação atrás da outra”.
Ligou a TV para espairecer. Viu as notícias. Ex-presidente metido em crime de falsidade. Militar falando em golpe de Estado com “legalidade”. Assustou-se com o espírito vil de estelionatários que tramavam e executavam pequenos e grandes trambiques à luz do dia. Despudoradamente, às vistas de todos. Sem vergonhas, porque sabem que os outros são normais. Não têm este mal terrível de Gregório. Espírito mutilado de compaixão, respeito e uma compulsão suicida por honestidade. Chorou até adormecer. De tristeza pela humanidade corrompida, de vergonha pelo que era, de medo pelo que será de sua vida neste mundo de gente sã de mesquinharias.
(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES
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