(*) Eduardo Martins, docente adjunto 4 (UFMS), campus de Nova Andradina, curso de História –
A culpa é do Pedro Américo. E, não do Pedro de Alcântara, dom Pedro I, imperador do Brasil. Sua pintura feita no ano de 1888, intitulada “Independência ou morte”, entrou para a galeria de imagens canonizadas pelo Estado Nacional, enquanto elemento formador da identidade nacional, cumprindo função de lembrar que a “pátria amada Brasil”, agora estava livre da “tirania” da metrópole europeia. Aquela pintura acabou se tornado o fato histórico, “em si”, falado por ela mesma, sobre um tipo de acontecimento que, para o Estado nacional, do tipo excludente que ali nascia, preenchia todos os requisitos necessários para a fundação de uma nação patriarcal; católica, eurocentrada, branca, excludente, mas, sobretudo; escravocrata – a principal fonte de riqueza desse período era obtida por meio do tráfico de pessoas arrancadas da África. À jovem nação independente tinha que cumprir um requisito básico: manter a escravidão e o tráfico negreiro.
Mais um 7 de setembro, e lá vem a ladainha: escolas públicas e privadas servindo o Estado Nacional, fabricando pequenos “robôs” que marcham, dançam ao som da valsa vienense, sob apito de cachorro, ou ainda, ouvindo o canto da sereia. Este é o momento ideal para refletirmos sobre “independências”, leia-se, cidadania. Volto aqui com o dever de ofício para narrar sobre uma efeméride consagrada no imaginário popular; numa fabricação fantasiosa, circense e populista – vejam as praças, ruas, escolas e muitas residências dos “cidadãos de bem”, como eles usam e abusam das datas e símbolos nacionais; bandeira, hino, e a data do 7 de setembro como elementos de nacionalismo ou patriotismo, seja lá o que isso signifique para essas pessoas.
Nem as margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico. Primeiramente porque não havia margens plácidas, trata-se de um laguinho barrento e cheio de merda de cavalos e vacas que por ali pastavam e bebiam água, coisa dos paulistas que inventaram em chamar de Riacho do Ipiranga. Depois, nunca teve o tal povo heroico. E, dom Pedro I estava lá, no dia 7 de setembro, com uma enorme dor de barriga se aliviando.
Há um episódio de maior monta que passa despercebido pela história oficial, pela Escola em geral e pela memória patriarcal. Ocorrido cinco dias antes, na cidade fluminense do Rio de Janeiro, no palácio real, em que, na sua ausência, quando de partida para São Paulo, dom Pedro I nomeou sua esposa, a Princesa dona Leopoldina, Regente Interina do Brasil. Nesta data, a princesa, enquanto presidenta do Conselho de Estado assinou o decreto, separando o Brasil de Portugal. E tomou a decisão de comunicar dom Pedro e o orientou para que proclamasse a Independência.
Ao que ele cumpriu, no dia 7 de setembro, assim que recebeu as “ordens” de dona Leopoldina. Enquanto ela aguardava o retorno de Pedro, Leopoldina, governanta interina de um Brasil já independente, idealizou a Bandeira do Brasil, em que misturou o verde da família Bragança com o amarelo-ouro da família Habsburgo. É preciso um olhar mais atencioso à História das mulheres, é preciso decolonizar o acontecimento do 7 de setembro falocentrado na figura de dom Pedro, e no quadro do Pedro Américo, e potencializar a mulher Leopoldina. Atenção: já tivemos duas mulheres presidentas do Brasil.
Figura 1 – Dona Leopoldina presidindo seu Conselho de Estado, em 2 de setembro de 1822 (1922).
Fonte: ensinarhistoria, (2024)[1]
Figura 2 – Quadro “Independência ou morte”, de Pedro Américo (1888).
Fonte: Wikipedia, (2024).
A pintura “Sessão do Conselho de Estado”, foi feita no ano do centenário da Independência, 1922, por uma mulher, Georgina de Albuquerque. Considerada uma das primeiras mulheres brasileiras a conseguir firmar-se internacionalmente como artista, Georgina foi também pioneira na pintura histórica nacional. Sua pintura rompeu o paradigma, ao colocar uma mulher como protagonista de um momento histórico brasileiro.
A chamada independência do Brasil e sua concretude se fizeram contra o povo, em favor de uma pequena burguesia; homens muito ricos; comerciantes urbanos, funcionários públicos da antiga Corte Joanina, fazendeiros, mas, sobretudo, os traficantes de escravizados que perfaziam as mais vultosas somas de capitais, dinheiro e negócios da praça fluminense daqueles anos e, não se furtavam em “ajudar” a Coroa, seja o pai dom João VI, e depois o filho dom Pedro I, em socorro às finanças da Casa imperial, quase sempre falida. Desta feita, numa relação de toma lá, dá cá, ou no sentido sociológico do “jeitinho brasileiro”, o Estado era dominado pelos interesses privados; de ricos comerciantes traficantes de escravizados. Note que, a Independência do Brasil, não aboliu, nem o tráfico negreiro, muito menos a escravidão, volto a dizer, porque esse fato parece que passa sem notado, tampouco discutido, justamente quando o país celebra a sua “Independência”.
Outra vez, venho aqui falar sobre essa triste data da memória oficial, que reitera numa temporalidade quase imóvel, desses 202 anos de invenção de um certo tipo de “nação”, que teima em celebrar uma data nacional que não teria acontecido de fato desta maneira, mas de outras diversas, com outros/as protagonistas. Em que os povos indígenas teriam reivindicado a posse das suas terras e a chefia das suas aldeias, negros alforriados exigiam participação política e civil e reconhecimento de cidadania, negros escravizados fugiam com maior intensidade e número para os quilombos, os homens brancos pobres também enviavam petições à Assembleia Constituinte reivindicando justiça contra todos os tipos de arbitrariedades do Estado e das elites contra eles, sobretudo, prisões políticas, as mulheres enviavam Requerimentos ao Parlamento de 1823, exigindo direitos, numa clara e manifesta visão de que os/as oprimidos/as estavam lendo aquele momento em que a palavra independência soprava pelos quatro cantos do país, e quem a ouvia fazia dela uma interpretação, uma (re)adaptação aos seus desejos, suas necessidades. A petição de Gonçalves Ledo há exatos 202 anos, contou com 6 mil assinaturas do povo nas ruas fluminense, para que dom Pedro I convocasse uma Assembleia Constituinte, deixa muito claro o desejo do povo em participar daquele momento, por meio da criação do Poder Legislativo. O povo não queria mais uma monarquia e ser súdito, disse sim ao parlamentarismo e exigia a cidadania.
Cumpre lembrar que o dever da Educação, da escola pública (ou privada) é a de ser libertadora e reflexiva, mas, sobretudo, estimular crianças, jovens e adolescentes a conhecer o Brasil profundo; fazer emergir questões: como a escravização de seres humanos foi possível, mesmo depois da Independência que teria libertado o país do jugo colonialista português? É obrigação, conditio sine qua non, da Escola promover a reflexão crítica do seu alunato sobre os conceitos de direitos humanos, liberdade, independência, e sobretudo, cidadania.
Finalmente, a Independência do Brasil, aconteceu no dia 12 de outubro de 1822. Mas essa é outra imagem e outra história que, além de tantas outras “pinturas” da separação de Portugal, vai ser contada no meu novo livro “1823: A Assembleia Constituinte, a escravidão e cidadania”. Já está na editora, aguardem.
[1] Disponível em: https://ensinarhistoria.com.br/linha-do-tempo/conselho-de-estado-decide-pela-independencia-do-brasil/. Acesso em: 4 set, 2024.